Medo
Conto do Leitor: O caderno de Poesias
Olá amigos e amigas, é com grande alegria que volto a compartilhar no blog um conto de uma colaboradora muito querida, nossa amiga Giulia Fontana Pena. Quem frequenta o Noite Sinistra a um certo tempo, já deve ter lido algum dos ótimos contos dessa jovem e talentosíssima escritora (clique AQUI e AQUI para ler), que gentilmente atendeu a um pedido meu e escreveu o texto que compartilho com vocês agora. Aproveitem...
O caderno de poesias
DESPEDIDA
Entendam que em meu peito reina a tristeza,
Por isso chamo a Morte, não por vileza
Quando, enfim, Ela escutar-me o pranto,
Ó mãe, embale-me no berço sempiterno
E meu sono vele com seu sorriso terno.
Não vale a pena chorar sobre meu ataúde,
Não vale triste nota dedilhar no alaúde,
Pois não é a mortalha mais que manto
Que me afaga o corpo em noites solitárias.
Pela enésima vez leio esses versos. A qualidade literária é questionável, eu bem o sei. Por entretenimento, preferiria ler versos de Shakespeare, Byron ou Victor Hugo. Aqueles, porém, assim como outros bastante semelhantes que se encontram no mesmo caderno, prendem minha atenção por motivos que estão além da racionalidade, por despertarem em mim curiosas e terríveis emoções. Por causa deles, cotidianamente, desde que encontrei o caderno, uma profunda melancolia toma conta de mim; às vezes desejo morrer, como parece ter desejado a criatura que escreveu os poemas; às vezes sinto uma paixão louca e inexplicável por todos os textos do tal caderno, chegando a lamentar profundamente o fato de não ter conhecido quem os escreveu. A história e a origem desse precioso objeto são um tanto incertas para mim, posso, entretanto, dizer como veio parar em minhas mãos.
Em uma madrugada gelada de julho, por volta das três horas, quando eu estava prestes a pegar de vez no sono, ouvi — ou pensei ter ouvido — claramente um barulho na janela do quarto, como se alguém houvesse atirado um objeto nela. Sobressaltado, olhei ao redor, não havia nada de anormal no interior dos meus aposentos. “Decerto o material da janela se contraiu devido à repentina queda de temperatura, causando o barulho.”, disse a mim mesmo para afastar possíveis cismas da minha mente. Cerca de 10 minutos depois, novamente prestes a adormecer, ouvi mais barulhos na janela, dessa vez mais suaves, como se alguém, por meio de batidas, estivesse a pedir-me que a abrisse. Não abri. Receoso, olhei ao redor mais uma vez. Estaria enxergando vultos? “Não devia beber tanto antes de dormir.”, pensei. Decidi me levantar para tomar um copo d’água e assim “diluir” o absinto que havia sorvido. Ao voltar da cozinha, acidentalmente, tropecei na borda de um degrau e caí. Qual não foi a minha surpresa ao descobrir que o degrau no qual eu tropeçara era um baú disfarçado e que em seu interior havia um velho caderno? Essas casas antigas sempre guardam segredos. Desde que comprei esta sabia que um dia acabaria encontrando algo interessante nela.
Imediatamente peguei o caderno e me pus a mexer nos outros degraus na esperança de encontrar mais baús, mas para minha decepção, aquele era o único. Fui para a sala, enchi novamente o meu copo com a bebida verde de alto teor alcoólico e abri o caderno em uma página aleatória. É indescritível a sensação que me invadiu após a leitura do conteúdo dessa página. Posso dizer apenas que, no primeiro momento, aqueles poemas avivaram as lembranças da minha irmã mais nova, quase pude ouvi-la respirar. Ah, minha irmã... Tanto clamou pela morte que uma tuberculose que nem os melhores antibióticos puderam curar fê-la expirar em pouco tempo. Talvez, se ela tivesse vivido uns anos mais, teria escrito versos como aqueles. Tinha ela alguma “veia poética”? Não sei, mas tudo nela soava para mim como poesia. Após a leitura do primeiro poema, todo o sentimento de perda, todo o luto pelo falecimento dela voltou a pairar sobre mim. Aquela morte fora o acontecimento mais terrível e marcante da minha juventude, a macabra visão da jovem pálida e imóvel com a roupa e o leito repletos de sangue proveniente de sua boca semi-aberta ainda me faz estremecer.
Acordei horas mais tarde, no sofá da sala mesmo; o dia já estava bem claro. Havia lido, antes de adormecer, mais alguns poemas e tomado mais uma ou duas doses. Como estava transtornado! Minha cabeça latejava, a memória da minha irmã pulsava dentro dela e... havia algo mais... Como dizê-lo? Há quem afirme que as emoções dos antigos donos permanecem entranhadas nos objetos a que foram mais apegados, tornando esses objetos, verdadeiros invólucros de energia. Deve ser verdade, sinto algo a mais nesta casa, uma presença a mais, desde que encontrei o caderno e ela, ao mesmo tempo, me perturba e me seduz... Passei os dedos pelas páginas até chegar à primeira delas. Nela estava o nome da antiga dona do caderno, que eu, até então, não havia notado: Agustina Maria Lemos Ferreira. Céus! Até mesmo o nome tinha alguma semelhança com a da minha irmã — Maria Augusta Lemos de Freitas.
Foi a partir daquele dia que uma forte melancolia, agravada pela solidão, se incrustou no meu caráter de forma irremediável. Não havia nada que eu pudesse fazer para afastá-la. Passei a beber ainda mais na tentativa de esquecer esse sentimento, mas isso parecia agravá-lo. Dia e noite eu pensava naqueles poemas e em sua autora. Frequentemente sonhava que estava em casa seguindo uma jovem trajada com um vestido do século XIX. De início não podia ver seu rosto e ela sempre desaparecia de forma repentina quando eu me aproximava muito. Como isso me angustiava!
Dias depois, quando eu caminhava nas redondezas para tentar me distrair, acabei entrando em um cemitério abandonado. Mal percebia por onde pisava, o álcool e os meus pensamentos me impediam de prestar atenção na realidade ao meu redor. Tamanho era o meu alheamento que acabei tropeçando em uma cova, só então dei-me conta de onde estava, os escritos gravados na pedra que a cobria não deixavam dúvidas:
AGUSTINA MARIA LEMOS FERREIRA
*13/07/1843
†21/03/1863
Era um túmulo simples. Nada além de uma cova coberta por uma tampa de pedra na qual estavam escritos o nome da defunta e as datas de seu nascimento e de sua morte. Parecia nunca mais ter sido aberta desde o enterro, provavelmente a família não providenciara a exumação para transferência dos últimos restos mortais, como acontecera com a maior parte dos mortos que um dia haviam sido depositados naquele lugar.
É desnecessário dizer o quão maravilhado eu fiquei essa descoberta. Quase todos os dias eu ia para lá, enfeitava o túmulo regularmente com rosas vermelhas, brancas e cor-de-rosa e lia os poemas do caderno em voz alta, como se quisesse declamá-los para sua falecida autora. Havia também os dias em que eu, sentindo-me mais eufórico, levava para lá uma garrafa de uísque ou absinto e, enquanto bebia, derramava pequenas quantidades sobre a sepultura, como uma oferenda.
Aqueles sonhos se tornaram ainda mais frequentes e, com o tempo, a jovem trajada com roupas do século XIX passou a permitir que eu me aproximasse e visse seu rosto, às vezes ela também sorria para mim e eu sorria de volta. Ela aparecia linda nesses meus devaneios, tinha feições semelhantes às da minha irmã, com a vantagem de não ter comigo nenhum parentesco que tornaria nosso amor abominável para a sociedade. Aos poucos, eu tentava conquistar a figura dos meus sonhos. Consegui um beijo dela certa vez, enfim uma prova de que meus sentimentos eram correspondidos. A única coisa que eu não conseguia, por mais quisesse e tentasse, era manter longos diálogos. Desejava perguntar-lhe sobre sua vida e sobre os poemas, mas, estranhamente, nunca conseguia pronunciar as palavras nessas horas.
O fato de eu ter me apaixonado por uma criatura que só era tangível nos meus sonhos deixou-me ainda mais angustiado. Era extremamente doloroso, para mim, ter que acordar e enfrentar o cotidiano sozinho, sem a companhia da minha jovem amante. Por esse motivo, eu me esforçava para dormir durante a maior parte do tempo, mas não obtive muito êxito nisso, o álcool, cujo consumo eu era incapaz de interromper, às vezes cortava o efeito dos sedativos que eu tomava para tal fim e muitas vezes essa combinação produzia efeitos desagradáveis em minha mente, fazia-me ter outros delírios além dos que me eram agradáveis. Em certos momentos, eu desejava morrer para acabar logo com todas essas emoções enlouquecedoras, no entanto, havia algo nos olhos de Agustina que me dizia que ainda não havia chegado a hora, ela não queria que eu partisse para seu mundo, não ainda.
Certa noite tempestuosa, meus sonhos com a bela poetisa foram interrompidos pelo ruído de um enorme galho que se partira devido à força das águas e da ventania. Não suportei tal fato e saí de casa, debaixo da chuva, inconformado por não poder ter um momento de paz com a minha amada. Corri como um louco até o cemitério, parei diante da sepultura de Agustina e comecei a destruí-la, sentia uma necessidade inexplicável de ver seu conteúdo.
Encontrei um caixão gasto que continha um esqueleto envolto em um trapo, um trapo que, pelas características, parecia ter sido o vestido da moça com quem eu sonhava. Retirei a ossada, beijei-lhe o crânio e a levei para o sofá da minha sala, onde a posicionei sentada. É claro que eu não poderia voltar a dormir. Passei a noite andando de um lado para o outro diante do esqueleto, enquanto repetia, como em um delírio febril, o nome que tivera em vida: “Agustina!... Agustina!...” Quando o dia raiou, pude finalmente ir à cidade providenciar um vestido novo para a minha musa.
Atualmente, vivo naquela sala, contemplando o que restou da única mulher que pude amar na vida. A distância no tempo não permitiu o nosso encontro no mundo sensível, é verdade, mas posso sonhar com ela todas as noites e não há desvario mais maravilhoso que esse. Ela ainda não permite que eu abandone este mundo. Sei, contudo, que o dia em que poderei fazê-lo está próximo. Sei que, se não me for permitido fazer isso com minhas próprias mãos, minha saúde se debilitará a ponto de eu não conseguir mais respirar. Sim, já apresento alguns sintomas... Em breve nós poderemos ficar juntos de verdade, meu amor!...
Autora: Giulia Fontana Pena
Um agradecimento especial e uma salva de palmas a nossa estimada amiga Giulia por compartilhar conosco seus textos. Muito Obrigado!!!Quando amanhecer, você já será um de nós...
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