Medo
Conto do Leitor: O Colecionador
Saudações amigos e amigas. Hoje voltamos a contar com um conto escrito e enviado pela nossa amiga e colaboradora, Giulia Fontana Pena. Como muitos de vocês sabem, a Giulia já compartilhou vários contos aqui no blog, todos eles muito bem avaliados segundo os comentários dos leitores aqui do Noite Sinistra. Abaixo os amigos e amigas poderão conferir o mais novo texto escrito por essa jovem e promissora escritora, que embora esteja com pouco tempo livre, sempre atende ao chamado desse blogueiro chato que voz escreve e nos brinda com um ótimo conto...Aproveitem...
O colecionador
“Sou o sonho da tua esperança,
Tua febre que nunca descansa,
O delírio que te há de matar!...”
(Álvares de Azevedo – Meu sonho)
„So schnell Du auch fliehst
So weit Du auch kommst
Trägst du mich mit dir
Wohin du auch gehst
Was immer du tust
Ich bin ein Teil von dir ‟ *
(Tilo Wolff – Lichtgestalt)
Agora que me aposento, creio que seja um bom momento para refletir sobre um fato que me foi narrado há algum tempo. Talvez, para um psiquiatra adepto da alopatia, esse não seria um caso deveras notável. Eu, contudo, acho mais efetiva a cura pela fala que o tratamento alopático, no qual os médicos tanto insistem, e a cura pela fala, nesse caso, certamente teria sido um grande e curioso desafio para qualquer estudioso da mente humana.
Toda a história me foi contada em uma quarta-feira. Havia saído do escritório às 20h e, como o tédio pesasse sobre mim e a temperatura de verão me fizesse desejar uma cerveja gelada, dirigi-me a um boteco não muito longe dali, onde, por acaso, encontrei Robin, um velho conhecido.
O referido homem estava sentado sozinho em um canto e tinha diante de si uma tulipa de chope, para a qual olhava fixamente. Tão sombria era sua fisionomia e tão absorto em pensamentos ele parecia estar, que hesitei antes de me aproximar. Acabei fazendo-o, afinal, um pouco de conversa, se não lhe fizesse bem, mal não faria.
Acerquei-me de sua mesa, cumprimentei-o e perguntei se poderia me sentar na cadeira vazia. O homem consentiu. Pedi ao garçom uma tulipa semelhante e me pus a beber. Robin continuou calado sem desviar o olhar. Decidi perguntar-lhe se algo o afligia, ao que ele respondeu:
— Ah, doutor, — chamava-me assim, embora eu não fosse médico nem tivesse doutorado — há anos ando atormentado e nunca pude conversar sobre o assunto com ninguém. Pensariam que sou louco ou mentiroso.
— Bom, você ainda não me deu motivos para duvidar de sua palavra e se você de fato for louco, ainda dá tempo de procurar um tratamento. — Respondi sorrindo — Não quer se abrir?
Pela primeira vez naquela noite, Robin levantou o olhar em minha direção. Contudo, tão logo o fez, pousou novamente os olhos sobre o recipiente. Decerto estava em dúvida quanto à minha proposta.
— Você sabe, doutor, — começou em voz baixa após alguns instantes — que, durante quase toda a minha vida eu colecionei selos, certo?
— Claro, essa era a sua mania mais notável. Se não me engano, você parou com isso depois de perder toda a coleção naquela terrível ocasião em que sua casa foi assaltada, há uns dois anos, não?
— Exato. Era uma coleção valiosíssima!...
— Mas, já que essa perda é relativamente recente, não é ela a causa dos seus tormentos, é?
— Não, doutor. Meus tormentos são bem mais antigos e, de certa forma, eles é que motivaram a guardar todos aqueles selos.
— Como assim?
— Contarei toda a história. Ganhei meu primeiro selo aos doze anos, meu avô quem o deu. Disse que colecionara na infância e na adolescência e achou que talvez eu fosse gostar de fazer o mesmo. Fiquei maravilhado diante daquele selo comemorativo da inauguração de Goiânia, de 1942 e a partir daí comecei a me interessar pela filatelia. Todos meus parentes passaram a alimentar minha mania guardando os selos de suas correspondências e encomendas. Mal sabiam que estavam alimentando um monstro.
— Um monstro?
— Sim, um monstro. À medida que minha mania ia crescendo, uma estranha presença parecia obsedar-me, perseguir-me. Ouvia-lhe constantemente a respiração, sempre no ritmo da minha e sempre próxima à minha face. Às vezes ela também fazia ecoar um grito perturbador na minha mente, um grito que só se acalmava quando eu completava uma série, de preferência uma série rara e valiosa.
“Por conta disso, enveredei-me pelos piores caminhos para adquirir o dinheiro necessário para pagar pelos selos. Tentei a sorte nos cassinos, envolvi-me em tráfico de drogas, de órgãos e de armas, prostituí minha filha adolescente depois do suicídio da mãe dela, vendi quase todos os meus outros bens e cheguei a passar fome diversas vezes. Tudo para fazer calar o horrendo grito da criatura, que ressoava dia e noite na minha mente.”
Olhei assustado para Robin. Conhecia-o há muitos anos e sabia de sua obsessão por selos, porém, como nunca fôramos muito próximos, não desconfiava de seu envolvimento em tantos crimes com o simples propósito de manter um vício aparentemente inocente.
Meu interlocutor soltou um suspiro, bebeu um gole de chope e continuou:
— Depois que minha casa foi assaltada e meu único bem valioso, a coleção de selos, me foi tomado, pensei que enlouqueceria de vez. Meu desespero ao constatar tal perda é indescritível, bem como minha ansiedade enquanto aguardava, esperançoso, algum resultado da investigação policial. Durante esse período, a criatura da qual falei parecia disposta a acabar de vez comigo. Fiquei quase duas semanas sem dormir por conta de seus gritos no interior da minha cabeça e de suas tentativas de me estrangular.
“No entanto, coisa estranha, após esse tempo, o monstro foi se distanciando de mim até desaparecer por completo. Como você sabe, a polícia nunca encontrou minha coleção e a mim restou somente me conformar com isso. Com o passar dos meses, fui percebendo o absurdo de toda aquela vida dedicada a juntar selos e tentei — em vão — me reconciliar com a minha filha. Consegui, pela primeira vez, guardar uma quantia de dinheiro suficiente para um ser humano levar uma vida digna. Achei até mesmo que a perda me foi vantajosa em um aspecto: só depois dela eu pude ter paz.”
— Se é assim, por que continua atormentado?
— No mês passado, faleceu um tio meu. Herdei dele uma coleção de miniaturas de carros, com alguns exemplares extremamente raros. Resolvi dar continuidade a ela e me vi novamente encurralado pelo monstro dos outros tempos. Agora mesmo ele está aqui, chiando no meu ouvido esquerdo. Mas dessa vez, meu lado supersticioso diz que devo procurar um exorcista ou algum místico que seja capaz de expulsar espíritos malignos. Não voltarei a conviver com essa aberração...
— Não faz sentido tentar expulsar a criatura com a ajuda de um místico.
— Já sei, você é incrédulo demais para acreditar numa história dessas.
— Não, não. De forma alguma. Acredito em suas palavras. Apenas não acredito que uma terceira pessoa seja capaz de te livrar desse tormento.
— E por que não?
— Ora, de onde você acha que vêm os fantasmas que nos perseguem? Reflita bem sobre tudo o que contou aqui agora para descobrir a resposta correta.
Olhou-me estarrecido, pareceu finalmente compreender do que se tratava seu problema. Decerto o entendimento dos males não é tão simples para quem deles sofre quanto o é para o ouvinte com quem se desabafa.
Robin nada disse até a hora da despedida e seu semblante ficou ainda mais carregado que quando eu entrei no recinto. Soube, pouco tempo depois, de seu suicídio. Eu, no entanto, prefiro afirmar para mim mesmo que a criatura que o perseguia o matou, embora isso equivalha a afirmar que ele mesmo se matou.
*Tradução: “Não importa o quanto corras/Nem o quanto te afastes,/Carregas-me contigo./Aonde quer que vás/E o que quer que faças,/Sou uma parte de ti.”
Autora: Giulia Fontana Pena
Um agradecimento especial e uma salva de palmas a nossa estimada amiga Giulia por compartilhar conosco seus textos. Muito Obrigado!!!
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