Medo
Diário de Marli Dias
Esse é o diário de Marli Dias, encontrado em seu criado-mudo no dia 12 de Março de 2011 no estado de São Paulo. Seu conteúdo está sendo mantido em segredo até intervenção judicial, porém sua continência foi revelada anonimamente.
23 de Janeiro de 2011
Esta é a primeira vez que escrevo sobre este caso, que já está acontecendo há algumas semanas. Resolvi documentar tudo direito, pra, quando eu for na polícia fazer o B.O., eu poder mostrar tudo pra eles. Assim, os pais daquela pirralha mal educada não vão poder me dizer que foi tudo invenção minha. Quero ver se ela vai ter um álibi tão bom para todos os dias que eu anotar aqui!
Há algumas semanas que venho sendo sabotada em tudo que vou fazer. E toda vez que me acontece algo, olho ao meu redor e aquela garota está lá, me olhando e rindo. É uma garotinha, no máximo 12 anos, com um vestido branco, cabelos escuros crespos e compridos, pele branca. Ela estava presente em todos os acidentes que sofri nestas semanas. Desde escorregões a batidas de carro, logo após acontecer, quando olho ao redor ela está lá, com aquele sorriso no rosto. Obviamente que comecei a desconfiar de sabotagem!
Hoje, por exemplo, enquanto eu estava lendo em casa, a lâmpada novinha da sala queimou. Peguei uma escada e subi para trocá-la. Quando já estava lá em cima, girando a lâmpada velha, a escada tombou, e eu caí, com a lâmpada nova na mão. Além de bater a cabeça no chão, cortei a mão com os cacos de vidro. No momento da raiva, olho pela janela, e lá está ela, do outro lado da rua, me olhando bem nos olhos e rindo à custa da minha desgraça! Olho a escada, e a sua perna está como que serrada. Tenho certeza que foi sabotagem!
Juro que alguém será processado por isso!
[...]
05 de Fevereiro de 2011
Aconteceu de novo. Outro acidente, outra sabotagem. Saí para dar uma volta de bicicleta, como sempre faço de sábado pela manhã, e, quando já estava quase em casa, a corrente se soltou. Ela não só se soltou como saiu voando, acertando minha coxa bem em cheio. Caí na hora por causa da dor, ralando o braço no asfalto. Alguns vizinhos viram e vieram ver se estava tudo bem. Olhei em volta e vi, no fim da rua, a menina me olhando e rindo. Comecei a gritar, apontar na direção dela e perguntar quem eram os pais. Mas aí que aconteceu algo estranho: ninguém pareceu entender do que eu estava falando, só queriam saber se eu havia batido a cabeça, e ficavam pedindo para ligarem para uma ambulância. Eu disse que não era nada de mais, só faria um curativo e tudo estaria bem. Perguntaram se não bati a cabeça mesmo. Eu disse que não, e olhei pro fim da rua de novo. Ela não estava mais lá. Aparentemente ninguém a viu também…
Dessa vez ninguém viu, mas da próxima vou ter certeza de mostrar para todos a minha jovem sabotadora.
[...]
06 de Fevereiro de 2011
Esta menina está começando a me assustar. Hoje estava cuidando do meu jardim, no meu quintal. Todas as portas estavam fechadas, e não há passagem para o jardim direto da rua, ou algo parecido. Não tem como pularem o muro, é muito alto! Mas mesmo assim, enquanto eu cortava os galhinhos das minhas plantas, uma pedra da parede se soltou e bateu em cheio na minha cabeça. Olhei pra cima, de onde a pedra veio, e, pra minha surpresa, a menina estava lá, em cima do muro, me encarando e rindo. Mas havia algo errado em seu rosto. Acho que, como eu sempre a via de longe, nunca havia reparado como ela era pálida, como seu sorriso era largo. Uma pessoa normal não tem uma boca tão larga. Mas não era como se estivesse rasgada, como a boca do Coringa, do Batman. A boca é naturalmente larga, como a boca do gato sorridente de Alice no País das Maravilhas. Tem algo errado com essa menina… E como ela foi parar em cima daquele muro?
Não parei pra perguntar, apenas saí correndo pra dentro de casa, e liguei pra polícia. Eles que dêem um jeito nessa vizinha maldita…
08 de Fevereiro de 2011
Depois que liguei pra policia anteontem, eles ouviram a história da minha mini perseguidora, e fizeram uma busca na vizinhança, tentando descobrir qual a casa onde ela vive. Mas não encontraram nada, ninguém parece conhecer essa menina. Ninguém parece já ter visto ela alguma vez na vida além de mim!
Na rua todos me olham como se eu fosse doida! Não é possível que ninguém tenha visto uma menina tão chamativa dessas…
Eu não estou doida…
16 de Fevereiro de 2011
Já faz alguns dias que eu não acredito mais que vou conseguir processar alguém. Ninguém nunca ouviu falar dessa maldita menina! Acho que ela nem deve ser daqui. Deve estar me perseguindo mesmo. Isso se ela realmente existir!! Estou começando a acreditar que ela sequer existe, é tudo da minha cabeça mesmo, como estão dizendo por aí…
Essa noite tive a impressão de ver ela andando pelos corredores da minha casa. É nessas horas que a gente se arrepende de morar sozinha… Eu devia ter alugado pelo menos um quarto dessa casa.
Estou dormindo com a porta do quarto trancada depois disso. Estou realmente com medo do que ela pode fazer comigo enquanto durmo!
26 de Fevereiro de 2011
Tinha esquecido que estava escrevendo esse diário, o abandonei quando me dei conta de que a menina não passava de imaginação minha. Mas resolvi escrever de novo hoje. Se me acontecer algo alguém vai encontrar isso e saber o que eu passei.
Faz uma semana que não durmo. Dois dias após escrever a última página desse diário, quando estava dirigindo de volta pra casa do trabalho, a noite, o motor do meu carro ferveu (ou seja lá como se chame esse tipo de coisa, quando o motor começa a soltar um monte de vapor do nada). A rua estava deserta, então eu mesma desci do carro, abri o capô e fui tentar ver se saberia como resolver o problema. Claro que não soube… Resolvi voltar para o carro e ligar pro seguro ir me guinchar.
Tenho certeza de ter checado o banco de trás antes de entrar, e ele estava vazio. Mas, quando eu fui ligar pro seguro, eu olhei no espelho retrovisor, e a vi. Ela estava ali, no banco de trás me olhando e rindo. Sua pele pálida, seu sorriso largo demais para qualquer ser humano… Eu nunca havia reparado como seus dentes eram pontudos. É como se ela os lixasse, para parecerem dentes de gato.
E seus olhos, eram tão pretos, era como se tivessem apenas a íris, sem aquela parte branca ao redor. Eram olhos grandes, negros, e suas olheiras estavam fortes e fundas, como se ela nunca tivesse fechado os olhos na vida. Era a visão do mal! Nunca havia visto algo tão terrível na vida! Nem no pior filme de terror. E ela estava logo ali, no meu carro, nas minhas costas!
Saí do carro o mais rápido que pude, saí correndo e não parei até chegar a um lugar onde tivesse mais gente, um bar. Passei o resto da noite naquele bar, só saí de manhã quando fecharam. Voltei onde havia deixado o carro, mas, obviamente, ele não estava mais lá. Quem resistiria a um carro, no meio da rua, com a chave no volante no meio da noite?
Fui a pé pra casa, pensando no que me aconteceu. Mas, depois que entrei, comecei a ter uma crise de pânico. Não consigo mais sair de casa desde aquele dia, sinto um horror terrível quando chego perto da porta. Porém, ao mesmo tempo, sinto que estou sendo vigiada todos os dias, principalmente à noite. Sinto aqueles olhos negros me observando onde quer que eu vá.
Não consigo dormir, pensando no que pode me acontecer, no que ela é capaz de fazer. Passo as noites em claro lembrando daqueles dentes pontiagudos, daqueles olhos negros…
12 de Março de 2011 – Delegacia de polícia da Zona Leste de São Paulo
Venho, por meio deste, relatar o estranho caso da Sra Marli Dias, 28 anos, brasileira, solteira. Após denúncias de vizinhos se queixando do desaparecimento da senhora em questão, fomos, a princípio, checar o último local onde foi vista, sua própria casa, também o local mais propenso a encontrá-la.
A cena encontrada, porém, foi a mais perturbadora que já vi em minha vida. A senhora estava em seu quarto, com seus olhos arrancados, provavelmente por ela mesma, e por suas próprias mãos. Sua boca estava rasgada, de orelha a orelha, porém nenhuma arma, ou objetos cortantes, foram encontrados na cena do crime. Possivelmente fora rasgada por suas próprias unhas. Seus dentes haviam sido quebrados de forma bastante precisa, deixando apenas restos pontiagudos dentro da boca.
As paredes do quarto estavam todas escritas em sangue, porém, não pudemos distinguir o que diziam. Deciframos apenas algumas palavras, como “olhos”, “dentes”, “sorriso”. À frente da vítima havia uma espécie de diário, anexo a este relatório. Seguem anexas também as fotos do local, com os dizeres nas paredes, e a forma como a vítima fora encontrada.
A senhora estava acordada quando foi encontrada. Estava em estado de choque, desnutrida, desidratada e com grande perda de sangue, devido aos vários ferimentos que infringiu a si mesma. Ela estava em um estado de semi-consciência, e balbuciava coisas ininteligíveis. Conseguimos discernir apenas uma das frases, que ela repetia alternadamente às outras, enquanto ria em sua loucura: “Ela falou comigo, ela falou comigo!”.
A vítima foi imediatamente enviada para o hospital das clínicas, e se encontra atualmente em estado grave na UTI.
O mais perturbador deste caso foi o momento em que olhei em um espelho do quarto da pobre senhora, enquanto a resgatava. Tive a impressão de ver, ao longe, uma garotinha de vestido branco me encarando e sorrindo. Um sorriso largo demais, com olhos negros e fundos. Mas quando me virei em direção à janela, ela já não se encontrava mais lá.
Tenha bons sonhos, se puder...
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