Medo
Aviões não tripulados matam civis em zonas de conflito
Um ano atrás, na tarde de 24 de outubro de 2012, Mamana Bibi colhia quiabos na propriedade de sua família, localizada no vilarejo de Ghundi Kala, norte do Paquistão – a senhora de 68 anos pretendia cozinhá-los no jantar daquela noite. Estava acompanhada por quatro de seus netos, crianças que ajudavam a avó na colheita. No céu, veículos aéreos não tripulados (drones) dos Estados Unidos faziam manobras.
Todos estavam acostumados com aquilo – diariamente as aeronaves sobrevoam o Waziristão, área que faz fronteira com o Afeganistão e se insere numa região controlada por tribos. O motivo das rondas é o fato de o território montanhoso e inóspito abrigar membros do Talibã e da Al-Qaeda. Com frequência, são avistadas até formações de drones, patrulhando os céus em duplas ou trios. Mas, naquele dia, um deles disparou dois mísseis na direção dos civis. Um dos projéteis atingiu Mamana Bibi, que foi destroçada bem ali, diante dos olhos de seus familiares. “Antes eu não tinha medo dos drones. Mas agora, quando eles voam sobre a minha cabeça, eu me pergunto se vou ser a próxima”, diz Nabeela, 8 anos, uma das netas da vítima.
O uso de drones em operações militares do governo americano tem se tornado cada vez mais frequente também em países como Iêmen e Somália. No caso do Paquistão, estima-se que, de 2004 a 2013, 330 ataques tenham sido realizados no território, resultando num total de 2,2 mil vítimas. Destas, 600 seriam civis, dentre os quais haveria 200 crianças, segundo dados coletados pela Anistia Internacional junto ao governo paquistanês.
A organização não governamental de defesa aos direitos humanos publicou um relatório sobre a questão e lançou uma campanha por maiores esclarecimentos sobre as operações. “Não somos contrários ao uso, se ele for feito de maneira legítima e seguir as normas internacionais”, explica Maurício Santoro, assessor de direitos humanos da ONG. No entanto, da forma como vem sendo praticado, o ataque por drones fere os tratados internacionais, podendo ser enquadrado como assassinato extrajudicial e crime de guerra. Três aspectos são especialmente preocupantes nessas investidas: elas não distinguem militares de civis; aplicam arbitrariamente a pena de morte; e permitem a intervenção militar em territórios contra os quais não se está em guerra declarada.
Uma das maiores críticas levantadas pela Anistia Internacional é a falta de transparência por parte de ambos os governos no trato da questão. Oficialmente, os Estados Unidos não divulgam nenhuma informação a respeito e declaram que nenhum civil foi morto, apesar de evidências concretas provarem o contrário. “A posição do governo americano tem sido frustrante. São considerados combatentes todos os homens em idade militar da zona rural do Paquistão, desde adolescentes até idosos”, aponta Santoro. “As operações são obscuras e o arcabouço legal é controverso”, alerta.
O estado paquistanês, aliado dos Estados Unidos, também não tem intervindo satisfatoriamente em favor de seus cidadãos. Em situação diplomática desfavorável, qualquer atitude extremada certamente provocaria atritos com o governo americano. Segundo Santoro, os funcionários públicos locais chegaram a contribuir com o relatório da Anistia, mas apenas de forma oral, sem deixar nenhuma evidência escrita. “Empregados de ambos os governos procuram testemunhas e as intimidam, pressionam para que não façam denúncias às instituições internacionais. Pedem para esquecer o que viram e chegam a oferecer dinheiro”, acusa o assessor.
Os drones começaram a ser usados no Paquistão ainda em 2004, durante o governo Bush, quando realizavam incursões mais pontuais, eliminando apenas alvos inimigos estratégicos. A administração Obama optou por expandir consideravelmente a estratégia ao anunciar a retirada das tropas americanas do Iraque e do Afeganistão. Controladas à distância, normalmente de bases militares afegãs ou no oceano Índico, as aeronaves são uma opção barata para o exército se manter presente em regiões que permanecem instáveis.
As mortes de civis podem ser atribuídas principalmente a uma tática que passou a ser adotada também durante o governo de Obama, chamada de “signature strikes”. Os veículos aéreos não mais executam alvos específicos, mas ganham a liberdade de atacar qualquer grupo que apresente um comportamento considerado suspeito. No caso da idosa Mamana Bibi, um líder talibã supostamente havia sido avistado na região poucas horas antes do bombardeio – o exército americano julgou que ele ainda estivesse lá. Para a Anistia Internacional, informações duvidosas ou errôneas são as principais responsáveis por ataques indevidos que acabam tirando a vida de civis.
O resultado para a população desta ameaça constante pairando pelos céus é um estado de medo e terror generalizados. Santoro chama a atenção para o fato de que a estratégia pode vir a alimentar os próprios grupos que ela visa combater. “Quando essas crianças chegarem à adolescência, o que vai impedir de olharem com simpatia para grupos extremistas?”, diz.
Diante do que presenciaram, os netos de Mamana Bibi bem poderiam ilustrar esta constatação no futuro. Por enquanto, eles apenas sentem muita falta da avó que perderam para os drones. “Ainda estou em choque pelo assassinato de minha avó. Nós costumávamos nos reunir no quarto dela de noite e ela nos contava histórias. Às vezes massageávamos seus pés porque estavam doloridos do trabalho do dia”, diz Zubair, um dos netos de Mamana.
Fonte: Revista Galileu
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